Entre 2021 e 2024, o Sistema Único de Saúde (SUS) repassou à Prefeitura de Ananindeua quase 1 bilhão de reais, mais da metade para o pagamento de serviços hospitalares e ambulatoriais. O dinheiro foi repassado mês a mês, sem qualquer interrupção.
Mesmo assim, o prefeito Daniel Barbosa Santos passou boa parte desse tempo aplicando calotes em hospitais e clínicas da cidade. Os sucessivos atrasos de pagamento quase levam à falência o Hospital das Clínicas de Ananindeua (HCA); ameaçam a sobrevivência de uma clínica de hemodiálise e levaram ao fechamento do Hospital Anita Gerosa, a única maternidade que funcionava 24 Horas e atendia gravidez de alto risco, naquele município.
As dívidas da Prefeitura, só com essas três empresas, somavam R$ 13 milhões, até o final do ano passado. Bem menos do que a média mensal de repasses do SUS à Prefeitura, que é de cerca de R$ 21 milhões. Mas o prefeito atrasa os pagamentos, em geral, por 6 meses.
O que leva a que as empresas ou suspendam o atendimento aos pacientes do SUS, ou fechem as portas. E o fato é que ninguém sabe qual o destino do dinheiro do SUS, durante os meses a fio em que se estendem os atrasos de pagamento.
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Segundo o Ministério Público do Pará (MPPA), a saúde de Ananindeua enfrenta uma crise “sem precedentes”, que ameaça colapsar clínicas e hospitais, com prejuízos à população local e à toda a Região Metropolitana. Tanto assim que o Procurador Geral de Justiça (PGJ), César Mattar Junior, que comanda o MPPA, ajuizou uma “Representação Interventiva”, pedindo que o Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA) determine “imediata intervenção” do Governo do Estado no sistema de saúde pública de Ananindeua, até a normalização dos serviços. É que o fechamento de hospitais do município obriga ao deslocamento de pacientes para as cidades vizinhas, sobrecarregando os sistemas de saúde delas. Foi o que ocorreu com o fechamento do Anita Gerosa, em 26 de janeiro: gestantes de Ananindeua passaram a procurar a Santa Casa, em Belém, agravando a superlotação. Hospital sem fins lucrativos e com mais de 60 anos, o Anita Gerosa atendia cerca de mil pacientes e realizava 200 partos por mês.
Dívidas
Segundo o InvestSUS, o serviço online que permite consultar todos os repasses financeiros do SUS aos estados e municípios, a Prefeitura de Ananindeua recebeu, entre 2021 e 2024, na administração do prefeito Daniel Santos, cerca de R$ 960 milhões “líquidos” (o valor bruto era superior a R$ 984 milhões).
O grosso desse dinheiro foi para o custeio das ações e serviços públicos de saúde (R$ 952,9 milhões). E desse total, quase R$ 534 milhões deveriam ser destinados ao pagamento dos serviços de “média e alta complexidade”. Ou seja: atendimentos hospitalares e ambulatoriais.
É uma verba chamada de “carimbada”: não pode ser usada para nenhuma outra finalidade. E, segundo empresários do setor, é “carimbada” até mesmo “no CNPJ”: tem de ser entregue à empresa à qual se destina, já que foi ela quem realizou o serviço.
Os contratos entre a Prefeitura de Ananindeua e as empresas estabelecem que o pagamento deve ocorrer até o último dia útil do mês seguinte à realização dos serviços. E que se esse pagamento atrasar mais de 90 dias, o contrato pode até ser rescindido pela empresa. Mesmo assim, no final do ano passado, a Prefeitura possuía dívidas que chegavam há mais de um ano, com o Anita Gerosa e com o Centro de Hemodiálise Ari Gonçalves (CEHMO).
O sistema de saúde de Ananindeua funciona assim: ele é gerenciado pela Prefeitura, já que a cidade possui “gestão plena” da saúde pública municipal. É a Prefeitura quem contrata hospitais e clínicas, para os serviços de que a população necessita. E é ela, também, quem fiscaliza a qualidade desses serviços e se foram realmente realizados. O SUS entra com o dinheiro. O Fundo Nacional de Saúde (FNS) deposita os recursos diretamente na conta bancária do Fundo Municipal de Saúde (FMS). E aí, a Secretaria Municipal de Saúde paga os hospitais e clínicas.
O sistema funciona bem em cidades onde o prefeito não tem ligação com alguma empresa do setor. O que não é o caso de Ananindeua. Lá, o prefeito Daniel Santos foi, ou ainda é, um dos donos do Hospital Santa Maria. Ele se tornou sócio daquele hospital em meados de 2014. E teria deixado a sociedade em maio de 2022, segundo os registros da Junta Comercial do Pará (Jucepa). No entanto, há suspeitas, no MPPA, de que Daniel continua como “sócio oculto” da empresa. Daí também a suspeita de que esses calotes nos demais hospitais objetivem beneficiar o Santa Maria. Seja lhe destinando mais recursos do que aos outros, seja levando os concorrentes à falência, para que o Santa Maria abocanhe fatias maiores do dinheiro do SUS.
Indícios
Há indícios dessa última possibilidade: a tentativa de falir os concorrentes. Gestantes que eram atendidas pelo Anita Gerosa e que procuram o Pronto Socorro Municipal de Ananindeua, estariam sendo encaminhadas para o Santa Maria, para a realização de consultas, cesarianas e laqueaduras. Nas redes sociais, há depoimentos de gestantes sobre esse direcionamento para o hospital do prefeito.
E já há até um documento sobre isso entregue ao MPPA. Um esquema que lembra uma das fraudes realizadas no Iasep (o instituto de assistência ao funcionalismo estadual), que também direcionava grande quantidade de pacientes para o Santa Maria. As fraudes resultaram no desvio de R$ 261 milhões do Iasep para o Santa Maria, entre 2018 e meados de 2023.
A quadrilha foi desbaratada no ano passado. As fraudes também envolviam superfaturamentos de até 1000% nos preços cobrados ao Iasep pelo Santa Maria. Até uma simples agulha hospitalar, que custa 30 centavos, era cobrada a 18 reais. O MPPA investiga Daniel Santos, por suspeita de que ele teve papel relevante nessas fraudes. Já o prefeito recorreu, mais de uma vez, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, para tentar barrar as investigações contra ele, mas acabou derrotado.
Ministério Público pediu intervenção do Estado no município
A possibilidade de que os calotes da Prefeitura objetivem eliminar os concorrentes do hospital do prefeito parece partilhada pelo PGJ, César Mattar. Na Representação Interventiva que ajuizou no Tribunal de Justiça do Pará, no último 18 de fevereiro, ele alinha dois blocos de “atos concretos e omissões” que justificam, a seu ver, a necessidade de intervenção na saúde pública de Ananindeua, pelo Governo Estadual.
O primeiro é a “gestão temerária” do sistema de saúde: “atrasos sistemáticos” no pagamento de clínicas e hospitais. O que leva algumas “à iminente suspensão do atendimento pelo SUS”, e outras, ao próprio fechamento. Com isso, a população da cidade tem de buscar atendimento em municípios vizinhos, “impactando sobremaneira as ações e o serviço público de saúde prestados, em especial, pelo município de Belém, em flagrante violação ao direito à saúde e à vida da população de toda a Região Metropolitana de Belém, em descumprimento à Lei Federal n° 8.080/90, em especial o art. 2º e seu parágrafo 1º”. O artigo e o parágrafo citados por Mattar estabelecem que a saúde é um direito fundamental do ser humano. E que o Estado tem de providenciar condições para o exercício pleno desse direito.
No segundo bloco de “atos concretos e omissões”, Mattar chega a comparar o que a Prefeitura vem fazendo à uma prática empresarial conhecida como “dumping”: a eliminação da concorrência “por meio de práticas maliciosas e desleais”.
Isso porque hospitais e clínicas “estão prestes à ruína econômica pela falta de pagamento pelos serviços já prestados aos usuários do SUS”, o que possibilita direcionar o atendimento ao Santa Maria, “de propriedade do gestor municipal até o ano de 2022”. Ou seja: o encerramento da prestação de serviços para o SUS, por outras empresas privadas, “elimina” a concorrência, e o Santa Maria “pode conquistar maiores fatias do orçamento público da saúde de Ananindeua”, com o atendimento desses pacientes.
O fato, segundo Mattar, configura a “inexecução deliberada da Constituição da República, notadamente os artigos 196 e 197”. O artigo 196 estabelece que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Um direito que deve ser garantido por políticas públicas para a redução dos riscos de doenças e o acesso “universal e igualitário” à promoção, proteção e recuperação da saúde. Já o artigo 197 diz que as ações e serviços de saúde devem ser regulamentadas, fiscalizadas e controladas pelo Poder Público, e executadas diretamente, ou através de entes privados.
Atraso
A Representação Interventiva do PGJ decorre de um Inquérito Civil aberto pelo MPPA após o fechamento do Anita Gerosa, devido a um calote da Prefeitura que chegaria, na época, a quase R$ 3,7 milhões. No documento, o PGJ também lembra o caso do Hospital das Clínicas de Ananindeua (HCA), que, no ano passado, chegou a anunciar que encerraria o atendimento aos pacientes do SUS, devido ao atraso dos pagamentos pela Prefeitura.
O encerramento só não ocorreu porque o Governo do Estado firmou contrato com o HCA, para que ele continuasse a atender esses pacientes, disse o PGJ. Mas a dívida permaneceu e, no final do ano passado, estaria em R$ 5,751 milhões. Já no caso do Centro de Hemodiálise Ari Gonçalves (CEHMO), a dívida da Prefeitura estaria em R$ 3,606 milhões. E pacientes do CEHMO, segundo depoimento da proprietária, foram transferidos, no ano passado, para o Hospital Santa Maria.