Um “mundo inteiro” pode caber dentro de pequenos espaços pela cidade. Essa é a realidade dos sebos, locais de compra, venda e troca de livros seminovos e usados. Esses espaços são ótimas opções para quem quer ler a um preço acessível através do garimpo por títulos, edições e capas de exemplares. Espalhados por Belém, os sebos são espaços de troca entre livreiros, escritores e leitores, atuando como meio de conservação da história e promoção da literatura.
Em 2008, o professor universitário Charles Torres iniciou no ramo de venda de livros usados, no bairro do Telégrafo. À época, o livreiro estava em uma situação financeira complicada e decidiu vender os próprios livros na calçada da travessa Djalma Dutra no intuito de conseguir uma renda extra.
A informalidade durou pouco tempo e após uma semana ele conseguiu migrar para um ponto comercial na avenida Senador Lemos onde, até hoje, funciona o Sebo & Cia. Até então, os livros eram concentrados apenas na área de Ciências Humanas, com exceção de poucos exemplares de literatura nacional, espírita e esotérica.
“Eu batia de porta em porta e dizia que eu estava querendo comprar livros. Eu passei de dois a três meses fazendo isso e consegui muita coisa. Depois que o ponto físico se consolidou, não foi mais necessário fazer isso, as pessoas chegavam comigo, ligavam pra mim: ‘Charles, meu pai, meu tio faleceu, ou meu avô me deu esses livros aqui’, ou então que está de mudança e precisa desocupar um espaço. A aquisição de material é uma coisa bem aleatória. Você nunca sabe o que vai encontrar e isso é também o charme do negócio, a imprevisibilidade. A gente nunca sabe o que vai encontrar”, conta o livreiro.
Com 17 anos no mercado literário alfarrabista, hoje o Sebo & Cia conta com mais de 20 mil livros. O público bastante variado é responsável por uma grande demanda por livros da área de Ciências Humanas, mas também dos gêneros esotéricos, espíritas, literatura clássica brasileira e estrangeira e quadrinhos. Além das obras, CDs, DVDs e vinis são bastante procurados pelos amantes de tecnologias antigas.
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“A área de Humanas é a mais procurada, é a primeira parte do acervo que se esgota, principalmente se for filosofia, antropologia, sociologia e história. Já da área de exatas são os livros técnicos de matemática e física. Os quadrinhos também são muito bons de vender. E também tem muita gente que ainda está atrás de DVD, CD e disco de vinil, que são muito difíceis de serem encontrados, mas ainda existem. No meu caso, eu tenho um acervo bem pequeno de vinis, mas CD e DVD sempre é bem procurado”, afirma.
Desde o segundo semestre de 2024, Charles organiza um leilão on-line de livros raros e objetos colecionáveis, realizado através do site do sebo. Na sua quinta edição, recentemente a iniciativa contou com a venda de livros de história, filosofia, teologia, esoterismo, entre outros gêneros.
A iniciativa foi uma forma de movimentar um mercado ainda pouco explorado em Belém, onde os leitores de livros seminovos têm o costume de pechinchar bastante. Nesse caso, livros raros, itens de colecionador encontram a oportunidade de serem vendidos a um preço justo.
“No leilão tem a facilidade que não tem pechincha, não tem desconto. No leilão, o preço é aquele ou mais, nunca para menos. Então, são livros mais raros. Às vezes não é nem o ano da edição, mas é a tiragem que o torna raro. Por exemplo, há livros que têm mais de 100 anos, mas você encontra por aí a cinco reais, enquanto tem livros bem mais recentes que a tiragem foi muito pouca, que chega até a cifra de mil reais. No meu espaço físico eu não consigo vender esses livros, eles iriam sair no máximo vinte reais. E tem coisas que no espaço físico não sai, põe no leilão e vende”, explica o idealizador do leilão.
Em uma realidade cada vez mais permeada pelas novas tecnologias e a conexão contínua com a internet, trabalhar com a venda de livros tem sido um desafio para livreiros de todo o mundo. Por isso, para Charles, o ofício tem que ser pautado na paixão pela leitura, pela literatura e pelo conhecimento promovido pelos livros.
“O que me faz continuar nesse trabalho é gostar da leitura, gostar do livro, é o prazer de folhear um livro. É impensável, para mim, trocar um livro físico por um leitor digital, não é a mesma coisa. Você pega um livro e consegue sentir o cheiro do papel, folhear um livro que você já sabe que tem cem anos. Eu já tive momentos muito prazerosos com o livro com descobertas de material, assim como tive também muitas decepções e muitas coisas tristes que eu vivenciei com documentos que eu nem consegui resgatar”, diz o alfarrabista.
GARIMPO
Na avenida Pedro Miranda, há 22 anos impera o Sebo Arquivo Cultural. Administrado pelo livreiro Antônio Jorge de Souza, o sebo foi criado como uma resposta a uma antiga paixão da infância que o acompanhou a vida toda: a leitura. Com um grande número de exemplares próprios, ele os vendia aos domingos na praça da República, onde também começou uma prática de compra e troca de outros livros.
E tem sido assim, comprando e trocando, que Antônio tem se mantido durante mais de vinte anos no ramo de livros usados. “Eu tenho praticamente todos os tipos de livros. Eu sei que aqui, em média, tem uns 12 mil livros e ainda tenho mais em casa. Esses livros são catalogados em parte porque não temos muito controle, todo dia chega e sai. Esses livros a gente compra, troca e vende, assim que a gente consegue. Eu recebo quase todos os tipos de livro, só livro didático que eu não tenho porque chega muito e não tem espaço”, conta.
Em contrapartida, Antônio também relata que, atualmente, se manter financeiramente através da venda de livros usados tem se tornado cada vez mais difícil. Em uma época em que o acesso à internet é cada vez mais massivo, os hábitos e práticas de consumo também mudaram para o meio digital. Através de grandes empresas multinacionais de comércio eletrônico, os leitores compram produtos novos a preços mais competitivos, o que tem “quebrado” os negócios de rua, como sebos e livrarias.
“O livro está em queda, infelizmente. Temos um Instagram e publicamos por lá os livros que nós temos, isso é o que ainda movimenta. Aqui a vantagem é o garimpo. As pessoas chegam aqui e acham títulos, edições que já não vendem mais em livrarias comuns. Aqui a gente já tem clientes fiéis, principalmente da velha guarda que gosta de ler um livro e garimpar. É muito bom pegar um livro que a gente nem espera encontrar, é isso que vale a pena, procurar e achar algo inusitado”, garante Antônio.
Guardião
Na travessa 14 de Abril, o Sebo Grão-Pará atua como um ponto de encontro, cultura e literatura. O espaço é administrado pelo alfarrabista Daniel Rebisso, que iniciou no ofício de venda de livros seminovos nos anos 1990, quando ele próprio queria se desfazer dos seus livros. Iniciou, então, com poucos exemplares e, timidamente, fez parcerias com pessoas que também queriam se desfazer de suas bibliotecas pessoais, a quem pagava uma comissão por livro vendido.
Foi assim que ele teve acesso ao acervo pessoal do advogado Aquiles Lima, que possuía quase 5 mil exemplares publicados em todas as partes do mundo, como Estados Unidos e Argentina. Foi assim também que ele comprou algumas coleções de pessoas importantes de Belém, como o de um coronel que era dono da Transportes Aéreos da Bacia Amazônica (TABA).
Ao longo de cerca de 30 anos, o sebo passou a ser mais especializado e atualmente abriga por volta de 4 mil exemplares, sendo os mais procurados os livros de literatura paraense, com foco em escritores clássicos, como Eneida de Moraes e Dalcídio Jurandir; seguido de livros de auto-ajuda e, em terceiro lugar, literatura estrangeira e esoterismo.
“Eu me considero uma espécie de guardião do livro, aquela pessoa que compra o livro, o tem, esperando que apareça o dono. A minha missão é guardar os livros para que apareça o futuro leitor dele. Por isso que eu seleciono muito bem o meu acervo porque eu sei que alguém, algum dia, vem procurar por aquele livro. Nós também fazemos um trabalho muito social com doação para hospital, livros didáticos a gente manda para o interior, e outras partes, a gente faz um trabalho caritativo para quem aparece aqui e a gente vê que não tem condições para comprar”, relata Daniel Rebisso.
Muito conectado aos livros, o livreiro conta que o aspecto de guardião do livro o faz perceber algumas características comportamentais peculiares daqueles que são a principal meio de transmissão de cultura e informação. “Existem livros que têm donos, livros malditos e livros invisíveis. Às vezes, o dono se apega ao livro de tal maneira que ele não aparece para os outros leitores, é como se eles se escondessem. Mas às vezes o livro passa vinte, trinta anos comigo para que um dia apareça alguém perguntando por ele, eu vendo. E tem os livros malditos, são livros que trazem energia negativa pra quem os tem. São raros, mas existem”, afirma.