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sexta-feira, junho 13, 2025
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No Pará, amar é virar ‘canoa’: gírias com identidade afetiva

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É difícil estar no Pará e não ouvir alguém dizer que está encegueirado, virou canoa ou quer se amigar. Mais que meras gírias, essas expressões fazem parte de um universo linguístico carregado de afeto, identidade e resistência. No coração da linguagem cotidiana, elas expressam não apenas sentimentos, mas também formas de viver e ver o mundo que escapam às regras tradicionais da gramática, mas dizem muito sobre quem somos.

Se o paraense ama, trai, se apaixona ou resolve juntar os trapos, o jeito de dizer tudo isso passa por uma linguagem própria, rica em metáforas e com um sabor tipicamente regional. Esse jeito peculiar de falar virou tema do projeto de pesquisa “Banco de Dados Fraseológicos do Pará”, coordenado pela professora Carlene Salvador, do curso de Letras-Língua Portuguesa da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), campus Belém. A iniciativa já reuniu mais de duas mil expressões utilizadas em diversos municípios do estado.

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“Muitas vezes essas expressões nascem a partir de um grau de informalidade e se fazem entender completamente, com uma linguagem que chega na população, que a identifica, mas que são discriminadas pela norma culta. O que se percebe é que as fraseologias emergem independente do nível de formação do falante e algumas extrapolam a bolha de onde costumam emergir”, afirma a professora.

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O AMOR E O CAMPO LEXICAL

O trabalho revela como o paraense desenvolve maneiras únicas de expressar relações afetivas e sexuais, muitas vezes com criatividade, humor e metáforas. “Fraseologismos são revestidos de dois troncos, a metáfora e metonímia. Então o falante vai buscar, nessas unidades, refletir como é o seu dia a dia, como são seus sentimentos, atividades no trabalho. Ele vai representar nessas unidades essa configuração mais regional, que é como a fraseologia representa parte da vida desse indivíduo, quando ele diz, por exemplo, ‘tu é canoa’, é porque a ponta da canoa é guiada por alguém que não está na ponta, mas atrás. O falante vai usar unidades que estão dentro do seu campo lexical”, explica Carlene Salvador.

A CRIATIVIDADE DO FALANTE

Além disso, a criatividade popular encontra um caminho para escapar de tabus sociais por meio da linguagem. “Algumas fraseologias da nossa região são muito relacionadas à sexualidade. E esse caráter metafórico eu vejo como um sentido de burlar um tabu, de ser direto em uma unidade que trata desse assunto. Há formas consideradas ‘mais sensíveis’ de falar sobre o ato sexual. Mas quando o paraense usa fraseologias ao invés de dizer ‘fazer amor’, por exemplo, é uma forma de sair do tabu”, observa a pesquisadora.

A INFLUÊNCIA DO CONTEXTO E DA LOCALIDADE

A diversidade também se expressa dentro do próprio território paraense. Há frases e expressões mais comuns em determinadas regiões e praticamente inexistentes em outras, revelando o quanto a linguagem é sensível ao contexto local.

“Existem expressões ditas em Belém que não são frequentes no sul do Pará e vice-versa. As comunidades linguísticas se comportam de forma diferente de acordo com a localização geográfica. O território implica no falar e na valorização da língua”, afirma a professora.

ESTUDOS DE FRASEOLOGIA SÃO RAROS NO NORTE

Apesar da riqueza cultural, Carlene aponta que ainda são poucos os estudos na área fraseológica no Norte do Brasil. Por isso, o projeto busca sistematizar esse saber popular e valorizá-lo academicamente.

“Nós queremos institucionalizar essas fraseologias, estudá-las, colocá-las em dicionários. Essas expressões são deixadas à parte, porque são consideradas apenas como gírias. E não são simplesmente gírias, são nossa cultura. O estudo que estamos fazendo não é apenas uma contribuição para a linguística, mas uma valorização cultural da parte descritiva, não só normativa. É preservação da língua, daquilo que só tem aqui, e emergiu daqui”, destaca.

EXEMPLOS DA FRASEOLOGIA DO AMOR PARAENSE

Com três etapas – coleta, análise e catalogação – o projeto já mapeou expressões em 22 municípios. Confira algumas das fraseologias documentadas:

  • “Tá encegueirado” – Muito apaixonado, que não enxerga mais nada além da pessoa amada.
  • “Tu é muito canoa” – Pessoa que gosta de estar sempre acompanhada, deixando o outro conduzir.
  • “Bora se amigar” – Proposta de união informal, como morar junto.
  • “Levaram a moleca do irmão” – Referência a traição ou infidelidade.
  • “Tu já quer” – Interesse repentino por algo ou alguém.

A linguagem, como mostra o estudo, é viva e profundamente conectada com o jeito de ser do povo. No Pará, até o amor se diz de forma diferente – e não menos intensa.

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